sexta-feira, 1 de julho de 2022

Doméstica é resgatada após passar 43 anos em condições análogas à escravidão; 'Diziam que era da família', diz procurador

Ação foi realizada pelo MPT, no Recife. Mulher terá direito a uma indenização de R$ 250 mil por ter trabalhado desde 1979 sem salários e outros benefícios.

Sede do Ministério Público do Trabalho de Pernambuco (MPT-PE) fica no bairro do Espinheiro, Zona Norte do Recife — Foto: Reprodução/Google Street View

Uma empregada doméstica que passou 43 anos em condições análogas à escravidão foi resgatada em uma operação realizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Segundo a instituição, desde a adolescência, a mulher exerceu as funções em uma casa, no Recife, sem carteira assinada, salários, férias, folgas ou qualquer benefício de Previdência Social.


Agora, aos 54 anos de idade, ela está morando com uma irmã e terá o direito a receber indenização de R$ 250 mil. “Diziam que ela era quase da família”, declarou o procurador do Trabalho Leonardo Osório, que atuou no caso.

O resgate ocorreu no dia 22 de junho, depois de o MPT receber denúncias anônimas sobre a situação da doméstica. Além dos afazeres na residência, ela também atuava como babá. Durante todo esse período, trabalhou em todos os turnos, sem vínculo empregatício.

“Ela foi retirada de casa em 1979, no interior da Bahia, e veio para Pernambuco para trabalhar na casa dessa família. Quando descobrimos o caso, deixamos claro que não existe essa história de ser quase da família. Se existia algum tipo de ligação afetiva, ela não deveria ter ficado tanto tempo nessas condições”, afirmou Leonardo Osório.

Durante a operação, foi constatado que a trabalhadora foi entregue à família pelo próprio pai. A guarda dos documentos da empregada doméstica pelos empregadores também caracterizou "o trabalho forçado".

“Ela passou boa parte do tempo na dependência de empregada da casa. Depois, chegou a se mudar para um quarto. Ela não tinha sinais de maus tratos e até podia sair de casa. O problema é que ela não tinha vida fora daquela família e não sabia bem qual era a condição dela”, comentou.

Ao fazer o resgate, o MPT em Pernambuco entrou em contato com a família e foi feito um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Assim, ficou acertado que haverá o pagamento de indenização pelo período trabalhado, contado desde 1979.

“Ela já recebeu R$ 80 mil e vai, até o fim deste ano, ganhar mais duas parcelas de R$ 10 mil. Depois, serão 60 vezes de R$ 2,5 mil”, explicou o procurador do Trabalho.

De acordo com Osório, resgates como esse comprovam que ainda existe trabalho doméstico escravo, apesar das conquistas da categoria nas últimas décadas.

Para ele, o fato de a atividade ser exercida na particularidade dos ambientes residenciais dificulta que essas histórias sejam reveladas e os trabalhadores, libertados.

“Para que essas situações sejam extintas, é necessário que toda a sociedade mantenha um olhar atento para com o próximo”, afirmou.

De acordo com o procurador, a trabalhadora resgatada recebeu, ainda, três parcelas do Seguro-Desemprego do Trabalhador Resgatado.

A operação foi realizada, de forma coordenada, por auditores fiscais do Trabalho da Superintendência Regional do Trabalho (SRTb/PE).


Futuro


Na entrevista ao g1, nesta quinta (30), Leonardo Osório demonstrou preocupação com o futuro da mulher. Por enquanto, disse o procurador, o nome dela deve permanecer sob sigilo.

“Tive quatro encontros com ela e estou acompanhando. Quero que ela aprenda uma profissão, faça um curso e tenha uma nova vida. Ela tem nível de escolaridade aquém do necessário, mas pode, com certeza, ter qualidade de vida”, disse o procurador do Trabalho.

Osório lembrou que em uma das conversas com a resgatada ficou impressionado pelo fato de ela não se reconhecer na situação em que se encontrava.

“Ela lembrou de um caso parecido no Rio de Janeiro e me perguntou se ela era mesmo uma pessoa que estava em condição análoga à escravidão. Eu peguei a reportagem, abri no celular, e perguntei a mesma coisa. Ela, finalmente, reconheceu”.

Outra preocupação, agora, é com o acompanhamento financeiro da mulher. Leonardo Osório disse que será preciso orientá-la no futuro.

“Deixei claro que ela vai receber um bom dinheiro de indenização e que terá que cuidar disso. Vamos acompanhar o caso para que ela realmente e tenha uma nova vida”, comentou.

O procurador disse que encaminhou a mulher para o serviço de saúde para que ela tenha conhecimento de como proceder daqui para frente. “Ela tinha plano vinculado à família, mas não tinha ideia do que tinha direito”, observou.

Saiba como identificar os casos

Segundo o MPT em Pernambuco, existem várias formas de identificar o trabalho escravo doméstico. Uma delas é analisar se há jornadas de trabalho exaustivas, a qualquer hora do dia ou da noite, sem direito a folgas ou pagamento de hora extra.

Outra questão é a oferta de moradia em cômodo com más condições de higiene e conforto.

É preciso, ainda, saber se houve restrição de alimentação ou acesso a serviços públicos e de assistência à saúde.

O “empregador” também não pode proibir saída do ambiente de trabalho em função de dívidas, com retenção de documentos.

Por último, o MPT alerta para os casos em que a pessoa não recebe salário ou direitos trabalhistas sob a alegação de que "é da família”, como ressaltou o procurador Leonardo Osório.

As denúncias ao MPT em Pernambuco podem ser feitas pelo site ou pelo aplicativo Pardal. O denunciante tem como optar pelo anonimato ao fazer o registro.

Pelo Brasil

Em maio deste ano, No Rio de Janeiro, uma mulher foi resgatada após passar 72 anos em condições análogas à escravidão. Ela tinha apenas 12 quando chegou à casa de uma família no Cachambi, zona norte do Rio.

Foram mais de sete décadas sem salário, sem férias e nem qualquer direito trabalhista. Dormia num sofá da casa onde fazia trabalhos domésticos e cuidava de uma idosa como ela.

Em abril de 2022, uma mulher de 52 anos, que trabalhava como doméstica, foi resgatada no município de Vitória da Conquista, no sudoeste da Bahia, depois de permanecer por 40 anos submetida a condições análogas à de escravo.

De acordo com o MPT, a mulher foi resgatada encaminhada para a casa de familiares, em Itacaré, no sul baiano.


G1 PE

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